MUSEUS E EDUCAÇÃO
João
de Deus Vieira Barros
RESUMO
O presente
trabalho procura investigar em que medida os museus de um modo geral, mas em
especial os museus históricos e artísticos são depositários de uma memória
social e de como esse aspecto possibilita utilizá-los tanto como meio de
educação não formal quanto de complemento à educação escolar. Objetiva ainda
contribuir para o debate que vislumbra as relações patrimônio cultural,
imaginário e educação, como subsídio à sedimentação de uma identidade coletiva.
Contemporaneidade é o presente histórico (...) no tempo físico, o
presente é a mais irrelevante de todas as dimensões (...) O presente, enquanto
dimensão do tempo físico é, pois, um irremediável estado de passagem (...)
Contemporaneidade é a dimensão presente do tempo histórico (...) São
contemporâneas coisas, pessoas, fatos, idéias, acontecimentos que fazem parte
da vivência de um tempo. Quanto dura? Depende dos limites que lhes coloquemos.
Beatriz Fétizon
O tema desse trabalho incita-nos
a uma incursão, ainda que breve, nos meandros do tempo. Não há como falar de
museus e educação sem nos referirmos à temporalidade. O museu nada mais é que a
tentativa humana de coagulação do tempo. O sonho humano de parar ou aprisionar
o tempo está materializado nos museus.
Na
condição de educador irei me preocupar apenas em apresentá-lo como um lugar de
educação não formal, no entanto, sem perder de vista as enormes possibilidades
que os museus oferecem como parceiros ou complementares da educação escolar.
Mas o que é educação não
formal? O que a diferencia da educação formal ou escolar? Para os fins da
presente reflexão é suficiente apreender da educação não formal, conforme nos
lembra Gohn (1999) sua atuação de forma difusa, menos sistemática e burocrática
que a escolar. Não possui uma centralização unificada e institucionalizada que
determina currículos e fiscalizações.
Enfim, a educação não formal tanto quanto
a informal – essa sim, absolutamente assistemática e sem espaço e tempo
pré-determinados para acontecer, estando, portanto, presente em todos os
momentos e lugares das vidas das pessoas – possuem em comum o fato de
acontecerem predominantemente fora dos espaços das escolas, tendo como
transmissores do saber os não-professores, ou seja, agentes educativos que, em
virtude do cargo, função ou papel social
que ocupam no mundo do trabalho ou na sociedade, respectivamente, tornam-se
multiplicadores potenciais ou efetivos do conhecimento, ajudando a escola em
sua função precípua de educar. Dentre as agências de educação não formal
encontram-se cinemas, galerias de arte e museus. E entre os meios de educação
informal podemos apontar, por exemplo, as tradições culturais e os esportes
populares quando são praticados em praias, ruas e outros espaços informais.
Voltando à questão do tempo,
para Fétizon (2006, p.164) “O presente é um irremediável estado de passagem. Só
adquirirá estabilidade histórica – completa e intocável, quando se tornar
passado”.
E mais, a contemporaneidade:
“É o recurso
humano genial de enfeixar as três dimensões do tempo – passado, presente e
futuro – num único espaço-tempo humano, irreal e imperfeito em que as três
dimensões, numa larga margem temporal se tornam uma – e uma estável e
significativa sede temporal de nossa vida; sede e dimensão em que vivemos e nos
construímos como seres reais e realmente existentes.” (idem)
Portanto, os museus de um modo
geral, em especial os museus históricos, possuem uma característica única:
situam-se permanentemente no tempo físico do presente, mas, contraditoriamente,
almejam guardar ou aprisionar o passado histórico, já que o passado físico é
irremediavelmente, passado. Contraditoriamente, também, os museus são
espaços-tempo objetivamente situados na contemporaneidade e, como tal, têm
possibilidade de enfeixar os três tempos: passado, presente e futuro. Em nenhum
lugar somos mais convidados a antever o que virá que em um museu. O acervo dos
museus, relativo a qualquer período histórico, tanto nos leva a devanear
sobre um tempo do qual não somos testemunhas, quanto nos convida a sonhar com
um futuro. Isso nos leva mesmo a pensar em duas situações: uma que seria a
possibilidade de existência de um museu somente com objetos contemporâneos. E
isso parece que as denominadas feiras já realizam. Feiras de novidades
eletrônicas, de utilidades domésticas, de arquitetura, de máquinas e outros
utensílios. Tecnologia, sonhos e devaneios se entrelaçando
.
A segunda situação seria um
museu de objetos futuros. O simples desejo humano já não seria, assim, a
antecipação do futuro?
Não quero me estender demais
nessas digressões. No entanto, valho-me de três exemplos: J. C. de Melo Neto,
poeta pernambucano, já escreveu um livro denominado “Museu de Tudo”. De que
trataria um livro de poemas com tal singularidade? Convido os presentes que desconhecem
tal obra a imaginarem. O cantor e compositor Cazuza, na música “O tempo não
pára”, nos brinda com os versos: “Eu vejo o futuro repetir o passado. Eu vejo
um museu de grandes novidades. O tempo não pára”. Eu próprio já escrevi um
texto cujo título é “Museu de Gestos”
.
Como e onde seria tal museu?
E tudo isso nos leva a indagar
sobre uma outra concepção de museu, ademais vislumbrada por artistas
, à
margem de um pensamento científico ou de cunho eminentemente pedagógico. Um
museu em que presente, passado e futuro co-existissem, privilegiando toda a
produção do imaginário
humano. Tudo isso para além de uma crença de que “museu é lugar de coisas
velhas” ou de que “lugar de velho é no museu”, como vociferam bocas
inadvertidas. Em ambos os casos a revelação de duplo preconceito: tanto com os
velhos (idosos), quanto com o museu enquanto espaço da memória e das
realizações humanas.
De um modo geral, como se
entrelaçam museu e educação?
Já vimos que o museu é um
espaço educativo por excelência, não somente por nele encontrarmos parcela
significativa da cultura material da humanidade, mas por ele ter-se tornado um
lugar de encontro, por excelência. É o encontro e é pelo encontro que acontece
o aprendizado: “O museu deve ser fórum, lugar de encontro, espaço de debate, um
lugar em que as coisas se produzem e não apenas o já produzido e já comunicado”
Como nos lembra a pesquisadora Magali Abreu
.
Portanto, uma das importantes características do museu como espaço educativo
está justamente em sua possibilidade de uso como
locus de socialização e de sociabilidade. Lugar em que as pessoas
se encontram não apenas para realizar visitas burocráticas, mas lugar de
descoberta e, sobretudo, de auto-descoberta, visto que hoje já não é mais
possível uma educação que proporcione
apenas o conhecimento, mas também, o auto-conhecimento.
Não podemos nos esquecer de que
um museu (e refiro-me especialmente aos museus históricos e artísticos) é um
guardião da produção cultural, em especial, da cultura material de um povo.
Portanto, lugar que proporciona ao ser um encontro com a história humana, com o
passado coletivo e também com as raízes de uma identidade nacional, por
conseqüência com uma identidade individual.
Um museu há que ser um espaço
em que nos encontremos conosco mesmos, com um passado e com um fazer coletivos
que influenciaram a contemporaneidade. A história não é produto de uma única
classe ou etnia. Os museus devem possibilitar aos que os freqüentam a chance de
um encontro com nossas origens e raízes culturais, portanto simbólicas – mas
que reverberam ou repercutem como imagens trans-históricas e que chegam até nós
com a força viva dos acontecimentos que, vindos de um passado, de certa forma
ecoam até os nossos dias.
Dessa forma, os museus como
espaços educativos devem ser capazes de possibilitar o gosto e a apreciação da
cultura material e simbólica, bem como o gosto pela sua preservação e
perpetuação. O gosto e capacidade de apreciação tanto do belo quanto do
repugnante, pois objetos por mais que sejam ancorados em suportes da
materialidade, carregam em si o peso da história e invocam realizações,
tragédias e sentimentos ofuscados pelo próprio passar do tempo. Objetos de
museus devem possibilitar a revivência do passado e seu prolongamento até nós.
Vejamos o que nos diz Messentier
(2005, 170), a respeito da relação memória/aprendizagem:
Como
todos sabem não há aprendizagem sem memória. O processo de construção da
memória social é, portanto, um elemento que contribui para o êxito de uma
sociedade no equacionamento dos problemas com os quais se confronta (...).
Ou
ainda:
Para o desenvolvimento da humanidade, também foram
fundamentais a escrita, a organização de bibliotecas e, seguindo nesse caminho
até chegar ao computador, a criação dos mais variados tipos de suporte da
memória social, porque estes instrumentos ampliaram a capacidade e aceleraram o
processo de aprend1zagem social. (idem)
E conclui esse autor que a
construção da memória social é decisiva para a formação de identidades
coletivas.
Portanto, o museu há que ser
um lugar que proporcione a construção ou perpetuação/sedimentação dessa memória
social, reelaborada ou relida a cada momento histórico, mas com a finalidade de
ajudar a construir a identidade coletiva. E isso é um dos interesses da
educação. Tomando-se o cuidado de que
essa memória, sendo nacional respeite a pluralidade, uma vez que: “o mesmo
objeto patrimonial pode constituir em uma referência de diferentes
identidades.” (idem, p.171)
Por exemplo, São Luís é referência para os
ludovicenses, maranhenses, brasileiros e é patrimônio mundial da humanidade.
O autor nos lembra ainda que “o
patrimônio edificado possibilita um contato coletivo da multidão anônima das
cidades com referências da memória social” (idem, p.172). E é esse caráter
público que favorece tendências à socialização, pois possibilita a apreensão do
sentido de história por todos. (idem).
Posso dizer que o acervo de um
museu também se presta a isso.
Para concluir esse trabalho gostaria de
inserir no mesmo uma crônica
que publiquei há quinze anos atrás, a qual realiza uma especulação sobre um
museu absolutamente imaginário. Talvez mesmo um museu de devaneios. Em que
medida a educação escolar não necessita de um museu (ou museus) como o que
descrevo a seguir, para que se consiga atingir uma educação formal mais afinada
com os gestos da humanidade, levando o educando a perceber a grandiosidade e
mesquinharia de determinados gestos humanos? Vejamos o texto, integralmente.
“Quem
nunca se traiu pelas palavras? Ou por um gesto?
Imagino
um museu diferente: de gestos. Um outro mais estranho ainda: de palavras.
E um outro mais impossível: de sonhos. Não sei qual seria mais efêmero.
No
Rio de Janeiro existe o `Museu do Imaginário´, resultado de estudos iniciados
há décadas pela psiquiatra Nise da Silveira, a partir de trabalhos realizados
por `doentes mentais´. Não deixa de ser um museu de sonhos, manifesto em forma
de artes plásticas, desenhos, pinturas. A doutora Nise é uma seguidora de Jung
e trabalha de há muito com a simbologia das imagens pictóricas oriundas das
ditas `mentes doentias´ e o resultado é fantástico, pois muitos quadros são
verdadeiras obras de arte. Aliás, arte e loucura andam muito próximas e até
existe no Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo cadeira com esse
título: `Arte e Loucura´.
Voltemos,
então, às perguntas iniciais: `Quem nunca se traiu pelas palavras? Ou por um
gesto?´.
Tenho
um museu de palavras e gestos. Quem não o tem?
Quantas
vezes fomos vítimas de uma traição por outros, através de falsas palavras ou
gestos maliciosos que deram a entender a outras pessoas sobre fatos que,
justamente, desejamos ocultar?
Quem, na infância, não ouviu palavras que no mesmo instante estavam
sendo desmentidas, discretamente, por um piscar de olhos da mãe para o pai ou
vice-versa? Depois, dormíamos, sonhávamos e, no dia seguinte, acordávamos e
quem sabe até pensássemos que tudo não passara de um sonho.
Especulemos,
agora, nosso museu de gestos.
Como seria? Deveria, sem dúvida, haver
um critério para sua formação. Primeiro teríamos que selecionar as peças desse
museu, enfim, que gestos selecionar... Depois procuraríamos saber a quantidade
de gestos e, finalmente, onde guardar todos esses gestos.
Privilegiaríamos
os gestos simbólicos ou os diretos? Os gestos individuais ou coletivos?
Poderiam
conviver lado a lado o gesto sublime de Cláudia
amamentando a filha com o gesto duro de um pai repreendendo o filho, sem nem se
comover com as lágrimas que escorrem por aqueles olhos?
Talvez
fosse ideal um museu departamentalizado, não com gestos expostos
aleatoriamente. Haveria a seção dos gestos simbólicos (e é tão difícil dizer
qual não é) individuais e coletivos: como o do estudante oriental que se postou
diante do trator na praça da `Paz Celestial´ ou o do romeiro que paga promessa
carregando enorme pedra na cabeça, durante a procissão de São José de Ribamar.
O primeiro simboliza a coragem; o segundo, o sacrifício, a autoflagelação,
diríamos, em nome da fé.
Haveria
outras seções, como a dos gestos bruscos, dos violentos gestos, a dos gestos
calmos, como o leve levantar das mãos de Hermínio
pedindo `bênção, meu padrinho´, nas calmas manhãs de Ribamar
Haveria,
ainda, a seção dos gestos sublimes, dos nefastos, dos negligentes...
Deveria
haver um espaço só para gestos obscenos? E um lugar só para os grandiosos
gestos?
Quem
sabe houvesse uma seção para os gestos ingênuos, outra para os gestos
maliciosos: aqueles que dizem e não dizem, são e não são.
Talvez
fosse necessário colecionar-se também os gestos ligados ao corpo humano.
Sorrisos de todos os tipos quantos
não seriam? Piscares. Abrir e fechar de bocas. Mãos acenando, caindo, mãos se
esfregando, acariciando, apertando o próprio corpo ou partes dele. Pernas
bambas... Seriam tantos gestos. Pernas firmes, correndo, paradas.
Esse museu
seria imenso. Se resolvêssemos catalogar e colecionar esses gestos
diacronicamente, então, talvez acabássemos por contar a própria história da humanidade:
a história feita de gestos, de grandes e de pequenos gestos, de gestos
grandiosos e mesquinhos que levaram o mundo ao que é.
Gestos.
Gestos. Gestos. A história e a própria vida resultam deles: sucessão, um puxando
o outro.
A
verdade é que cada um de nós guarda um museu de gestos: somos projetor e tela.
Em que espaço selecionar, catalogar e reunir tudo isso?
Só existe um: o espaço mental. Nele, individual ou
coletivamente, cabem todos os gestos da humanidade. ”
REFERÊNCIAS
BIBLIOGRÁFICAS
BACHELARD, G. A poética do Devaneio. São Paulo: Martins
Fontes, 2. ed., 2006
BARROS, J. D .V. Museu de Gestos, O Imparcial, p.4, Opinião,
São Luís, 28 de julho de 1992
FÉTIZON, B. Desafios Epistemológicos e Educacionais na
Contemporaneidade. Anais do II Encontro de Educadores do Maranhão, Conferência
de Abertura, p.163-177, São Luís-Ma
MESENTIER, Leonardo M. Patrimônio urbano, construção da
memória social e da cidadania. Revista Memória, Natal: UFRN, n.28, p. 167-177